25 de novembro de 2015

Lobo Mau

   
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Abigail suspirou cansada e fitou com exasperação os relatórios que tinha acabado de ler. Medidas de segurança, detalhes sobre as pistas, descrições das cenas dos crimes, fichas das vítimas. A jovem não conseguia focar em mais nenhuma palavra, estava exausta, não lembrava a última vez que tinha jantado com a família, ido ao cinema ou lido um bom livro. Já havia tido reuniões com o prefeito, e até mesmo o governador, mais vezes do que jamais imaginou. O caso Lobo Mau a estava consumindo lentamente, da mesma forma que consumia toda a cidade. Estavam sitiados, havia toque de recolher e guardas por toda parte, muitos a paisana. Sentia-se como os Meninos Perdidos, que sem saber em que momento Gancho os iria surpreender, escondiam-se nos vãos das arvores.
O cheiro do medo era sentido em cada esquina.
A noite, chegou em casa e tirou do corpo a poeira de assassinatos, estupros, roubos e estresse, que lhe acompanhou durante todo o dia, olhou o guarda-roupa e desejou ser tragada para uma terra distante. Adomerceu inquieta com pesadelos que lhe roubaram os sonhos.
    No dia seguinte, mal havia pisado na sufocante sala quando requisitaram sua presença em outro lugar.
— Estamos indo investigar uma pista promissora. Se quiser nos acompanhar terá que correr. — Heitor parou ofegante na porta do escritório de Abigail, deixou a moça a par da situação e saiu tão rapidamente quanto chegou.
    Um pouco zonza com a informação, a agente levantou num salto, pegou o casaco e se preparou para sair, então olhou para o coldre pendurado atrás de sua mesa e caminhou até ele balançando negativamente a cabeça. Não gostava de usar armas de fogo, preferia muito mais o confronto corporal (ou quem sabe uma espada mágica? Como se a fantasia fosse possivel no seu mundo de horror). Prendeu a pistola na cintura e colocou o casaco por cima, torcendo para não ser obrigada a usá-la. Lembrando das palavras de seu superior, Abigail correu até a saída da base, tentou não chamar muita atenção, mas ninguém reparou de qualquer forma, a todo momento as pessoas corriam por aquele lugar.
    — Tem certeza que não precisa de uma equipe completa, major? Não sabemos o que pode ser encontrado no local. — O tenente-coronel olhava especulativo para Heitor. Abigail julgou que estava louca, quando imaginou um exercito de ratos escoltando-os.
    — Sim, senhor. Apenas a metade é necessária, e não queremos chamar muita atenção também. — Com a confirmação de seu superior, Heitor aproximou-se de Abigail, que havia acabado de parar à porta do SUV que os levaria até o local da pista. — Está pronta? — Sem esperar resposta ele abriu a porta do passageiro para ela, assumindo em seguida o lugar do motorista, observou os três agentes que estavam no banco de trás e fez sinal para o carro que os acompanharia. Apertando o volante até o nós de seus dedos ficarem tão brancos quanto ossos, saiu rumo ao que ele esperava ser o primeiro passo para o fim daquele inferno.

    Abigail passou toda a viagem em silêncio. A tensão dentro do veículo era cortante, em um torpor de ansiedade e estresse, a jovem relembrou mais uma vez os acontecimentos que a levaram até ali.

Ela era tenente da Polícia Federal, tinha acabado de descobrir o esconderijo de um dos mais importantes traficantes de drogas do país, estava sonhando com as férias que teria após a resolução do caso e então, uma semana depois de tudo ser finalizado, a polícia recebeu o comunicado da ANS (Agência Nacional de Segurança) informando que a tenente Abigail Moreau estava sendo recrutada e que assumiria o posto de capitã no departamento de homicídios. Ela não era obrigada a aceitar, ninguém era, mas também não seria sensato recusar. Dois meses depois de sua mudança, o primeiro assassinato Lobo Mau aconteceu, e ela foi designada para a equipe de investigação do caso, que era comandado pelo major Heitor.

    — Chegamos. — Heitor anunciou enquanto saltava do carro. Esperou que seus agentes estivessem reunidos e deu as ordens. Contando com ele e Abigail, o grupo era formado por dez pessoas. Seis deles ficariam do lado de fora, circulando a casa enquanto Heitor, Abigail e outros dois entrariam no lugar para investigar. Todos assentiram e deram inicio ao procedimento. A casa ficava afastada da cidade, como se um tornado houvesse passado ali e levado todo o resto, não havia nenhum vizinho num raio de cinco quilômetros. Era o lugar perfeito para um esconderijo.
    Com cautela, um dos agentes conseguiu abrir a porta de entrada. Quando os quatro entraram, Heitor dispersou os soldados e seguiu com Abigail para o centro do lugar. Tudo era impecavelmente limpo e arrumado, uma casa familiar que aparentemente não tinha nada a ocultar. Aos sussurros, percorreram todo o perímetro do lugar e, ao se certificarem de que não havia ninguém no local, puderam conversar num tom de voz normal.
    — Afinal, que lugar é esse, senhor? Por que estamos aqui? — A jovem havia evitado fazer essas perguntas pois sabia do estado de tensão que todos se encontravam, mas não conseguia mais se conter.
    Heitor suspirou e encarou Abigail.
    — Houve outra vítima. Foi em uma creche dessa vez. — Heitor percebeu o medo no olhar dela. — Não foi em Notredame, sua sobrinha ainda está a salvo.
    — E como descobriram esse lugar? — Abigail perguntou enquanto um alívio culposo queimava em sua garganta.
    — Ele deixou um rastro do óleo queimado que ele usa para besuntar o corpo das vítimas por todo o caminho até aqui. – Como uma trilha de pão que não foi comida pelos passaros, pensou a capitã.
    — Mas isso não faz sentido. Ele não comete falhas, Deus sabe que se cometesse nós já o teríamos pegado a muito tempo. — A voz dela soava abatida, as reviravoltas do caso os levava cada vez mais longe das respostas.
    — Sabemos disso, capitã, e também acreditamos que ele nos trouxe até aqui intencionalmente, esse lugar está limpo demais, ele queria que nós chegassemos até aqui. — Heitor observou a sala onde estavam parados, nem mesmo um rastro de poeira existia ali, era como se a gata borralheira houvesse feito a faxina antes da chegada deles.
    — Acredito que ele mantenha o lugar sempre assim, pro caso de não conseguir voltar quando se ausenta. Deixa tudo livre de pistas. – Abigail olhava para o lugar de maneira inexpressiva.
    — Tem mais uma coisa. Ele não seguiu o padrão. Vitima de ontem era mais nova, as caracteriscas fisicas são diferentes das anteriores. — O major observou a reação da jovem.
    — O que? Isso é ilógico, senhor. Foram cinquenta vítimas em um ano, todas da mesma idade, mesma cor dos olhos, mesma cor da pele. Todas seguindo meticulosamente o mesmo padrão. Ele não… Ele… O que ele está fazendo? — Abigail estava abismada e sentia como se tudo o que sabia até agora estivesse caindo junto com ela, em uma infindavel toca de coelho.
    — Exatamente. Ontem fez um ano que o primeiro assassinato aconteceu. Ele está mudando.
    As palavras ficaram soltas ao vento enquanto ambos tentavam com que elas fizessem algum sentido. Em todos seus anos de serviço, Heitor nunca viu um serial killer comportar-se dessa maneira.
    — Senhor, pode vir até a cozinha? Acreditamos que tem algo suspeito aqui. — Um dos soldados apareceu na sala e encarou o major e a capitã. Assentindo, Heitor se dirigiu para a cozinha, seguido por Abigail e pelo soldado. — Vocês sentem?
    Heitor ia perguntar exatamente o que deveria estar sentindo quando algo queimou em seu nariz.
    — Formol? — Abigail indagou para ninguém em especial.
    — Também achamos isso, capitã. Só conseguimos sentir quando retiramos a tampa que lacrava a pia. — O segundo soldado informou.
— Então é possível que haja um cômodo escondido aqui em baixo. — Heitor olhou para o piso da cozinha procurando algo que indicasse que estava certo. Minutos depois, o primeiro soldado notou uma irregularidade no piso abaixo do armário. — Um de vocês dois, vá até o carro e pegue um pé de cabra, vamos descobrir o que o nosso amiguinho guarda no porão.
    Passado algum tempo, com o alçapão aberto e o forte odor de formol exalando pela casa toda, Heitor e Abigail desceram para o porão. Heitor logo localizou um interruptor na parede ao fim da escada, e quando acendeu a luz, Abigail sufocou um grito de horror.



    Abigail encarava o espelho do banheiro, respirando fundo diversas vezes. Tentou se recompor do choro que teve após a tensão e pressão terem quase lhe sufocado. A jovem lavou o rosto e após enxugá-lo se dirigiu de volta a sua sala. Estava decidida a ir para casa, precisava de um tempo para descansar e pensar. Desejava intimamente, ter uma poção ou feitiço para apagar da mente as lembranças daquele dia.
    — Você está bem? — Heitor quis saber ao dar leves batidas na porta aberta e entrar no escritório.
    — O que você acha? — A capitã não conseguiu evitar que sua voz saísse ríspida. As lágrimas teimaram em brotar novamente em seus olhos, e sua expressão beirava a loucura.
    — Ah sim, eu entendo. Todos se desestabilizam em algum momento. Demorou a acontecer com você, alguns já estavam começando a apostar quanto tempo mais demoraria. — Ele esboçou um sorriso que julgou ser solidário.
    — Vou passar três dias em casa. Não avançamos em nada nas investigações e posso fazer o trabalho burocrático lá. Preciso respirar um ar que não exale tanta morte. — Seu olhar era duro e sua voz firme.
    — Você faz bem. Será avisada caso algo novo aconteça. — Após um leve cumprimento, o major saiu da sala. Abigail jogou-se em sua cadeira e tentou se controlar, mas foi impossível.
    Ao entrar no porão do Lobo Mau, ela não fazia ideia do que encontraria. Era uma sala ampla, todas as paredes possuíam prateleiras vermelhas que iam do chão ao teto. Uma delas estava ocupada com cinquenta recipientes de vidro cheios de formol. Em cada recipiente flutuava, de forma macabra, a cabeça de uma menininha.

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